23 abril 2006

Do bom uso da Língua!

Parece que estudar Camões já não é obrigatório no ensino português. Não sei se Pessoa ainda é. Ou Eça. Também não sei se Margarida Rebelo Pinto é aconselhada.
Gostaria, em tempo de parvoíces, dar também a minha sugestão para o programa de português, de um ano à escolha: o Regulamento de Estágio da OA. Peça única, de requintado recorte literário, capaz de iniciar um novo género, rivalizando no top de vendas com qualquer Código Da Vinci. Até vos impinjo uma antevisão de um próximo exame nacional de 12º ano.

1. Comente o seguinte excerto.

Artigo 2ºFases do estágio: formação inicial e formação complementar
1. O estágio terá a duração mínima fixada no estatuto e compreende duas fases de formação: a fase de formação inicial e a fase de formação complementar.
2. A fase de formação inicial destina-se a garantir a iniciação aos aspectos técnicos da profissão e um adequado conhecimento das suas regras e exigências deontológicas, assegurando que o advogado estagiário, ao transitar para a fase de formação complementar, está apto à realização dos actos próprios de advocacia no âmbito da sua competência.
3. A fase de formação complementar visa o desenvolvimento e aprofundamento das exigências práticas da profissão, intensificando o contacto pessoal do advogado estagiário com o funcionamento dos escritórios de advocacia, dos tribunais, das repartições e outros serviços relacionados com o exercício da actividade profissional.
4. Durante a fase de formação complementar o advogado estagiário participa no regime do acesso ao direito no quadro legal e regulamentar vigente.

O Autor surge neste excerto com uma atitude aparentemente determinada, mas algo amargurada. Como quem tem uma tarefa a desempenhar de que não gosta. Tem o cuidado de apresentar claramente o seu intuito: pretende falar das fases de estágio.
Ora, logo no início tem a preocupação de esclarecer que nem tudo é culpa dele. A duração, que pode ser o maior problema, não é culpa do Autor. É que ela é estipulada noutro documento, que o Autor não controla, tanto quanto sabemos, pode até nem conhecer.

O estágio está dividido em partes, e a esses períodos chamou fases: apenas momentos que vão passar. E insiste na repetição da palavra fase para o enfatizar. Para dar alguma esperança ao estagiário. Para o mesmo fim usa a aliteração do f, um som grave, arrastado, como que um sussurro, como uma brisa, como uma cantiga de embalar, para acalmar os jovens estagiários. Como quem lhes diz ao ouvido que já vai passar, que tudo correrá pelo melhor. Fixada, fases, formação, fase, formação, fase, formação.

Apesar disso, não deixa de ter uma voz firme, como o tempo futuro confidencia: o estágio terá a duração decidida. Não há margem para enganos nem segundas interpretações: ainda que o próprio Autor possa não concordar, ainda que a sua opção pessoal pudesse ser outra, o que existe deve ser cumprido. A sua vontade seria a de mudar, e apoiará a mudança, podemos especular, mas enquanto isso não acontecer, respeitará as regras vigentes e fá-las-á respeitar. É quase justo supor que formula aqui o desejo de mudança. De resto, essa mudança parece que a deseja também para as fases do estágio. Vejam como a uma fase inicial se segue uma complementar, com o entusiasmo com o 2 segue o 1. Ser-lhe-ia indiferente o nome dessa fase, diria que lhe é indiferente a existência dessas fases.

A descrição que faz de cada uma delas é igualmente elucidativa: frases longas, várias orações. Todas coordenadas, nenhuma subordinada: não há desenvolvimento da ideia, apenas uma contínua explicação, uma prolongada repetição. É o sentido desta paráfrase, desta transposição de uma ideia em termos equivalentes: de dizer o mesmo por outras palavras.

Julgo ser também esse o sentido do pleonasmo de dizer o Autor que a fase inicial pretende iniciar o estagiário. O que seria o mais irritante psitacismo é aqui, pela mestria do Autor, tão perfeita que se não nota, elevada a instrumento linguístico. Tudo ao serviço da intenção do Autor em dar um conteúdo ao que aparentemente seria dele desprovido, para que o estagiário não seja confrontado com a obrigação de frequentar uma formação sem conteúdo.

Anotemos que o campo semântico deste número 2 se refere a ciência, enquanto conhecimento: formação, técnicas, conhecimento, regras, deontológicos, competência. E a adjectivação que acompanha os termos não é menos expressiva. Nem poderia ser. Como o não são as formas verbais escolhidas: garantir, assegurado. O Autor pretende estender a sua mão forte e serena sobre as preocupações que possa ter o estagiário, transmitindo-lhe a tranquilidade e o sossego que sempre trazem a confiança e a segurança.

Noto, neste aspecto particular, uma mudança de atitude do Autor, quando avançamos no seu texto. O número 3 tem uma evidente alteração na postura do Autor. Não obstante continuar com o seu estilo professoral, desdobrando-se em explicações, e preenchendo com repetições um conceito por definição vazio, a sua intenção parece ter evoluído da anterior. Se antes o podemos ver preocupado, encarnando a missão de acolher, sossegar, tranquilizar os estagiários, agora vemo-lo, sobretudo, motivador. Paternalista ainda, mas sem se deixar cair em exageros. É sua intenção agora obrigar os estagiários à acção. Sempre com o seu acompanhamento e supervisão, mas com liberdade para actuarem por si.

Assim o vemos incitando a ida a tribunais, ao escritório, às repartições. É esse o sentido da enunciação feita, quase criando uma eufonia, com complementos sucessivos, separados apenas por vírgulas, para imprimir cadência, embalamento, movimento. O movimento que os estagiários devem fazer. Eles que vão, que vejam, que participem. Assim é que o verbo usado é apenas um: visa. Tudo o resto é o complemento, é o conteúdo do estágio em si mesmo. Há agora apenas lugar para a moralização, para o incentivo à acção. Como um pai que educou e quer agora testar os seus ensinamentos com a prática. Chega a comover.

Assim chegamos ao final do excerto. O verbo agora usado é participa. O Autor quer com isso significar que o estagiário é agora membro de pleno Direito – que bonito trocadilho – da comunidade dos Advogados. E di-lo sem rodeios.

Realmente, quem precisa de Os Lusíadas?

A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e estas gentes?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preeminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Os Lusíadas, IV, 97, Luís Vaz de Camões

20 abril 2006

A Rainhazinha!

“Se ordenasse a um general”, dizia frequentemente, “se ordenasse a um general que se transformasse em ave da marinha e se o general não obedecesse, a culpa não era do general. A culpa era minha.”
O Principezinho, Saint-Exupéry

O Principezinho, logo no início da sua viagem, encontrou um asteróide onde morava um rei. Um rei que gaguejava um pouco e parecia vexado. Um rei sem súbditos, que gostava de ver as suas ordens obedecidas e a sua autoridade respeitada.

Era uma vez a OA. Vivia num asteróide. Mais ou menos ignorada por todos. A um canto, se os asteróides tiverem cantos. Sem ninguém lhe encontrar grande préstimo. Sem ninguém lhe reconhecer grande mérito. Que também gaguejava e parecia vexada, de tempos a tempos. Era má. Vivia sozinha. Vivia sozinha porque era má. Não era má porque vivia sozinha. Gostaria de ser obedecida. De ter muitas ordens para dar a muitas pessoas. De ver reconhecida a sua importância. Como aquele rei. Mas está bom de ver: sem súbditos não há rei.

Um dia, lembrou-se de inventar uma regra. Era a calhar: ela gostava de ser obedecida. A partir daquela altura, todos teriam que lhe pagar um tributo. E que lhe prestar tributo. Por nenhuma razão especial. Porque sim. Nem prestou nenhum serviço adicional. Nem deixou de estar sentada no trono do costume. Com a perna cruzada para o mesmo lado. Ajeitando a coroa de vez em quando. Para se garantir que ainda a tinha.

A regra era simples. E as pessoas concordaram. Não queriam incomodar-se. Também é uma regra simples. A rainha foi dando ordens.

E deu-se ares de grande autoridade.

Os súbditos foram obedecendo. A rainha entusiasmou-se com as ordens. Os súbditos começaram a desconfiar. As regras complicaram-se para esconder a sua ineficácia. Surgiram dúvidas nos súbditos e as primeiras revoltas.

A rainha perdeu a razão. Se fosse possível perder o que se não tem.
- Farão o que eu quero!
Ficou histérica.
- Agora dez de vocês vão para aquele tribunal! Esperam para ser precisos!
Tira a coroa para puxar os cabelos que lhe restam.
- Quero dez intervenções! Dez relatórios! Dez consultas! € 400!
Bate os pés no chão, bate com as mãos nos apoios do trono.
- E vai tudo fazer oral!

A rainha lá se mantém no seu trono. Assente num baralho de cartas. À espera de um vento mais forte. E os súbditos vão soprando. À espera de ordens razoáveis. Ou de não ter rei.

19 abril 2006

Aceitam cheque?

O que se escreve sobre nós nunca é justo: - ou é dum amigo ou dum inimigo.
Teoria da Indiferença, António Ferro

Parece inevitável que se digam, pensem, escrevam, sintam coisas parciais. Temo (mas só um bocadinho) não ser muito imparcial com a OA. Mas também, não é característica enformadora do carácter do Advogado a sua imparcialidade. Que é como quem diz:

- Quero lá saber!

Apesar destas limitações, ao que parece inatas, os números tendem a ser mais objectivos, menos dados a promiscuidades que as palavras sempre estão dispostas a encobrir. Então vamos tentar só com números. E sem ter a OA directamente na mira.

Desde o:

- Mãezinha, vou ser Doutor!
até ao:

- Senhora Minha Mãe, estou formado e... “estagiado”!

passaram, para além dos sete anos, nos casos menos dramáticos:

a) € 4.500 em propinas, aproximadamente, pelos 5 anos de curso;
b) € 3.600 em livros, mais ou menos. Sempre são 29 cadeiras. Mais ou menos. 120 livros, cerca de 4 manuais por cadeira, a € 30 cada um. Não contando com fotocópias várias, dossiers, cadernos, esferográficas coloridas, lapiseiras 0.7, lápis de cera, regra e esquadro;
c) € 20.000 em alojamento, números redondos. Imaginemos regime de pensão completa. Façamos a conta supondo um gasto de € 400 por mês.

- É no Bairro Alto, Mãe! Muito sossegado! E já tem incluída uma senhora de idade que vai fazer a minha comidinha e tratar da roupita!

Ora, € 400 vezes 10 meses de pagamento, não contando com a caução ou adiantamento ou jóia, são € 4.000 por ano. Faz de conta que todos os anos o jovem estudante universitário procura uma casita ou um quartinho, ou que alguém aguenta dois meses o quartinho desocupado, à espera do regresso do estudante pródigo.

- O menino vá lá passar as suas férias com os paizinhos! Vá lá, vá! Eu espero até Setembro! E faço-lhe o bolinho de maçã que o menino gosta!

€ 4.000 por ano, durante 5 anos, está bom de ver, é só fazer as contas.
d) € 25 por mês para o passe social. Por € 400, o jovem deve ter encontrado alojamento dentro da cidade de Lisboa, portanto só precisa de passe de metro e autocarro. Ou só de metro, para onde é que quer ir? E com desconto de cartão jovem. (Existe desconto de cartão jovem nestes passes?!) Nem vamos contar com combustível. Este jovem é daquela minoria que não tem carro. Falta adicionar as despesas da deslocação a casa, à terrinha, aos fins de semana, ou duas vezes por mês. Portugal não é muito extenso, vamos adicionar € 50 por mês. Portanto, temos cerca de € 75 por mês para gastos com transportes. 10 meses de aulas, 5 anos de curso, seriam € 3.750.
e) € 12.000. Faltava a mesada. Sejamos optimistas também nisto: € 200 por mês. Ora, o tabaco e o café não conhecem férias, e as noitadas têm tendência para aumentar ainda mais nesta altura: seriam € 200 vezes 12 meses, durante 5 anos. É como o terceiro prémio do concurso do Arroz Cigala.

Não vamos contar orais de melhoria, revisões de prova, fotocópias de exames, impressos de matrícula, e outros formulários e actos vários. Ficam umas pelas outras. Confesso: não sei se alguma das 333 medidas do Simplex incidirá sobre estes procedimentos.

Esqueço algo importante, seguramente. Por certo, exagero algumas despesas. Perdão, investimentos. Também o Direito não é uma ciência exacta, que os Juristas não deixam. E bem.
Tudo junto, € 45.000.

Findo o curso, são € 100 para pagar o diploma, mais € 15 para o certificado de habilitações, porque o diploma demora cerca de 2 anos.

- Tem urgência no certificado? São mais € 15, faz favor!

São mais € 600 de inscrição na OA. Já se sabe: quem paga adiantado fica mal servido. Os 700 créditos necessários na segunda fase de Estágio, a uma razão de 25 créditos por acção de formação a um preço médio de € 30 por cada, custam cerca de € 840. Mais € 400 para a inscrição no exame de agregação. Grosso modo, € 1.840.
Sete anos depois, portanto, passaram cerca de € 47.000.

Talvez não seja muito. Talvez haja cursos mais caros. Além disso, há bolsas de estudo. E alojamento social. E há alunos de Lisboa e arredores. E não serão precisos tantos livros. E não precisa morar no Bairro Alto. E pode andar a pé, que Lisboa é um bairro. E não precisa ir a casa todos os fins de semana, que já não é nenhuma criança. E não precisa uma mesada tão grande. E pode bem ir trabalhar.

Não vou cair na tentação de ver nos números a polissemia com que as palavras sempre me acenam e que, por definição, não podem ter.

17 abril 2006

What's in a name?

Se o período que segue o final do curso em Direito se não chamasse Estágio, seria provavelmente remunerado. Se o recém licenciado se apresentasse no mercado de trabalho nessa condição, teria direito a um salário pelo seu trabalho, como é regra elementar do funcionamento de qualquer mercado.
Não que a minha especialidade seja a economia, mas, tanto quanto a minha pouca experiência me permite apurar, todos os bens são transaccionados mediante o pagamento de um preço. O trabalho é um bem; o Estágio é um período de formação por definição.

Estágio: s.m., tirocínio, aprendizagem
(O que eu gosto do www.Priberam.pt!!)

Ora, tirocínio é um apalavra de origem latina (tirocinium, ii) que quer significar aprendizagem, noviciado, recruta. O dicionário ensina que a palavra foi formada por influência de tubicen, cinis: toque de trombeta. Agora começo a ver semelhanças entre o estágio, a recruta, a praxe e outros rituais de iniciação. Ou lá o que isto é.

Não faltará muito para o Estagiário, não só continuar sem receber, mas para começar a pagar. À OA já começou, a troco de serviço nenhum. Ao Patrono será o próximo passo. Sempre nos recebe no seu escritório. Às vezes até nos dá uma secretária só para nós. E permite o contacto com os processos que trata. Com alguns. E disponibilizada os meios que tem. Às vezes nem é necessário que o Estagiário leve material de escritório. Aí está um serviço que bem poderá vir a ser pago. Talvez seja o futuro.

Na verdade, até já pagamos ao Patrono. Afinal, não remunerar o trabalho recebido é uma forma de lucro. Para o Estagiário, são lucros cessantes. Dois anos de lucros cessantes. Seria deferido um requerimento apresentado à OA que exigisse o ressarcimento por esses lucros/salários que se não receberam?

- Senhor Doutor! Que disparate! Senhor Doutor! Isso nem está no regulamento. Senhor Doutor!

Não faz mal. O dinheiro não traz felicidade. Talvez. Mas a falta dele também não.

Outros estudantes há que terminam o curso e vão trabalhar. Respondem a anúncios, vão a entrevistas, são seleccionados, começam a trabalhar. Naturalmente, apesar da sua formação, têm um período de aprendizagem. Remunerada. Essencialmente uma aprendizagem das formas de funcionamento da empresa. Os conhecimentos técnicos vão sendo aperfeiçoados ao longo da carreira. Não é verdade que estamos sempre a aprender? Se não forem competentes, são dispensados. Como é óbvio.

Os licenciados em Direito não podem fazer isso. Têm toda uma longa aprendizagem para fazer. Depois da faculdade. E enquanto trabalham. Porque os Estagiários trabalham. O Patrono reconhece-lhes uma competência que a OA não vê. Deve ser o constrangimento que tem em beneficiar os seus filhos amados. Excesso de zelo.

O que distingue um recém licenciado em Direito de um colega de Economia não vai muito para além da existência da OA. Não muda a qualificação. Não muda a competência, não muda a experiência. Diria que a diferença entre ser Estagiário e trabalhador é o nome. Já sabemos que o nome é importante. Sobretudo o apelido. Ainda assim, o absurdo também devia ter limites.

What's in a name?
That which we call a rose
Without that title.

Romeu e Julieta, Skakespeare

13 abril 2006

O Tribuno! O Tributo?

A OA disponibiliza acções de formação aos seus Estagiários. É como um negócio familiar: o Regulamento inventou esta necessidade, e a Instituição garante o seu cumprimento. Estas acções consistem, geralmente, numa sessão com uma duração variável, que pode ir de duas horas até uma tarde ou uma semana. Um Advogado, ou um painel (é bonito chamar-lhes um painel!), discorre sobre um assunto. Apresenta os seus pontos de vista, partilha a sua experiência.

- Mamã! Dás-me 60€?
- É para a droga? Tira da carteira.
- É para uma conferência na OA.
- Outra vez, viciado?! Quando é que vais trabalhar a sério?

Custa aos pais entender que não é nenhum vício. Não é por gosto que o estagiário se entrega a estas actividades. É que os Senhores Doutores Advogados dão créditos. Como no circo dão um torrão de açúcar ao cavalinho, por ele ter feito uma pirueta em duas patas. E por usar aquelas penas maricas entre as orelhas.

Se não tenho os créditos que os Senhores Doutores Advogados entenderam (só eles sabem porquê, nem deus saberá), até posso ter 20 valores no exame escrito: vou fazer exame oral. Perante mais um painel de Advogados. Na faculdade, ter 12 valores dispensava-me de oral. E nem precisava ter créditos. Tinha crédito naquela casa.

- Se o discípulo tem uma nota de 12 valores, é porque sabe a matéria. Pode seguir o seu percurso.

Mas na OA não é assim. Há regras próprias. É outro mundo.
Obrigar o Estagiário à assistência de acções de formação tem o mesmo sentido que obrigá-lo a assistir a dez actos processuais, ou obrigá-lo a ter dez intervenções: nenhum. Acresce ainda, na parvoíce, o pagamento devido. Há algumas acções gratuitas, é verdade. Mas parece que o sistema só aceita inscrições para acções gratuitas quando o Estagiário já frequentou outras acções pagas. Dá-se uma borla ao jovem Estagiário que não tem salário mas tem compromissos. É marketing. Nem seria preciso. Não é possível ao Estagiário abastecer-se noutro mercado.

Depois de dois anos desta falta de respeito, se conseguir reunir todos os requisitos que a OA impõe, e sabe-se lá que mais vão ainda inventar, a advocacia perdeu algum do encanto que tinha. E eu que até queria ser Advogado. Como antigamente, como nos filmes, como nos livros.

O Tribuno
No calor da refrega entusiasma-se e a velha adrenalina escorre sem controlo.
Atira a as palavras, torrentes caudalosas de palavras, ganha força no argumento inteligente, na imparável rapidez de raciocínio.
Chega mesmo a esquecer-se que ele próprio existe...
É a palavra que comanda o jogo...

Os sapos vivos estão pela hora da morte, António Santos

12 abril 2006

El-Rei Seleuco

Sindicato: associação de indivíduos de uma classe ou grupo profissional para a defesa dos seus interesses profissionais e económicos. Confesso: a definição é do www.priberam.pt. Mas do Houaiss retirar-se-ia um significado semelhante, seguramente.
Um problema dos sindicatos: defendem, por definição, os interesses dos seus profissionais. Não dos profissionais to be, dos que... are!

OA: denomina-se Ordem dos Advogados a instituição representativa dos licenciados em Direito que, em conformidade com os preceitos deste Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia. Artigo 1º, nr. 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados.

As semelhanças existem. Ou talvez seja só o meu mau feitio paranóico. É um risco. Reparem:
1. É necessário pagamento à entrada.
2. A estadia não é gratuita.
3. Defendem-se os interesses da classe.

Ora, os interesses da classe são os meus interesses. Para o que agora aqui importa.
É do interesse da classe que a OA se intrometa em tudo o que diga respeito à Justiça.
É do interesse da classe que a OA faça muitas conferências. E diga muitas coisas. E apresente projectos. E seja ouvida. E elabore pareceres. E tenha muitas ideias.
É do interesse da classe que a OA seja convidada para debates na televisão. E na rádio. E que escreva artigos em jornais.
E a classe beneficia também, julgo eu. Ficam todos os Advogados muito importantes também. Com a toga sobre os ombros e os códigos debaixo do braço. Os Advogados beneficiam do prestígio da OA. Como a OA do prestígio dos Advogados. Fazem parte do mesmo grupo. Do mesmo clube privado. Uma mão lava a outra.

E há uma outra semelhança:
4. Defendem os membros que já lá estão.
Como qualquer clube privado, não pode entrar qualquer um. Se assim não fosse, todos saberiam que não se passa nada de especial lá dentro. E depois de entrar, ninguém o confessa para que não perca sentido o esforço feito na entrada. O rei vai nu.

O problema não é (só), na verdade, entrar neste clube privado. É ser obrigado a entrar. Porque se não quiser, se não gostar do cartão de sócio, se não gostar da sede, se não gostar das actividades de fim de semana, se não gostar do presidente (a que gostamos de chamar bastonário), se não gostar do logótipo, não posso ser Advogado.

Até a inscrição nos sindicatos é absolutamente livre. Nem a Constituição permite o contrário. A mesma Constituição que prevê a absoluta liberdade na escolha da profissão. É verdade: prevê a liberdade na escolha, não no exercício. Também é verdade: prevê, não promove. O sumo legislador. Ao seu melhor nível.

- Minha mãe, vou estudar Direito!
- Meu rico menino, que vais ser Doutor!

Vai ser... talvez. Só sete anos depois é que se vai saber. Porque os Senhores que estão à entrada do clube são rigorosos: querem saber se o Senhor Doutor Estagiário consultou dez processos; se participou em alguns actos processuais; se frequentou as acções de formação suficientes; se já deixou o chequezinho na entrada. Prova de fogo.

Edital
Vilões:
Eis-me, e digo-vos que sou de carne e osso.
Trago a tirania e a forca: tudo o que vos é preciso.
Exijo somente que me beijeis a mão de ano a ano, e eu serei vosso chefe e vos castigarei.
Que responda por vós a vossa cobardia.
Seleuco

Miguel Torga, Contos

10 abril 2006

A crédito é mais caro

A OA inventou uma coisa chamada créditos. O Estagiário vai juntando estes créditos para, reunidas as demais condições, e são mesmo demais, poder dispensar o exame oral. Porque se o Estagiário paga mais 400 € para fazer o exame de agregação, tem direito não só a um exame escrito, mas também a um oral. É o que, na gíria comercial, se chama um belo dois em um.

- Não estamos aqui para enganar ninguém, o Senhor Estagiário paga o exame escrito e leva ainda, sem aumento de preço, mais este exame oral!

Ora, estes créditos podem ser coleccionados pela frequência de acções de formação. O Estagiário consulta a lista, qual promoções da semana, elege as suas preferidas, manifesta o seu entusiástico interesse, declara-se em condições de a frequentar, espera ser aceite, paga e deixam-no entrar na salinha com os outros eleitos, para ouvir a conferência do Senhor Doutor Advogado, que tirou do seu tempo algum para partilhar com os seus colegas mais jovens a sua experiência. Louvável.

A OA, porém, não achou que esta partilha de conhecimentos seria suficiente para atrair os Estagiários. Resolveu, por isso, atribuir créditos pela frequência destas acções. Porque o faz, digo eu, julga que tem o direito de cobrar por isso. E o Estagiário assiste. Paga. Não porque tem interesse. Porque precisa dos créditos, para alimentar a esperança de vir a dispensar a oral.

É mais um negócio. Pergunto. Se as acções são mesmo necessárias, então devem ser todas gratuitas. Faria parte da formação que a OA se propõe garantir. Se não são necessárias, então não faz sentido dispensar um exame em função da assistência destas acções.
Qual é a relação, afinal, entre os créditos e a dispensa de um exame oral? A OA faz um exame escrito, classifica a prestação do Estagiário, e depois vai consultar a sua ficha pessoal.

- Este rapaz não tem muito jeito para isto! Ah, mas frequentou 15 acções de formação! Afinal está apto!

Seria mais lógico que a OA pensasse o contrário, que nem as acções de formação foram suficientes para instruir o Estagiário. De facto a OA não faz sentido. Não me canso de o dizer.

Para tentar dispensar esse exame é necessário juntar cerca de 700 créditos. Cada acção atribui 25 ou 40 créditos. Há excepções. Cada acção custa entre 10 € e 60 €. Há excepções. É só fazer as contas.

É tentador assemelhar este esquema de créditos aos pontos que o Pingo Doce vai oferecendo para a compra de um trem de cozinha. Imagine-se cada acção de formação como se fosse um tacho 20x15, com tampo em vidro e termóstato. Do mais alto nível.

Acresce que os Estagiários têm outras coisas para fazer. Estas acções podem ser a qualquer hora. Geralmente ao fim da tarde, mas podem ser de manhã, ou ao início da tarde. Quase sempre, frequentar estes seminários, ou conferências, ou sessões, implica pedir licença ao Patrono, humildemente, para poder ausentar-se por algum tempo.

- Precisava, Senhor Doutor, que me dispensasse por umas horas esta tarde. É para dispensar a oral.

Mas são precisos 700 créditos. Muitas horas. Muitas licenças. A OA entende que as horas de formação prática que se podem ter junto do Patrono podem bem ser compensadas por horas teóricas que ela própria organiza. É um entendimento. Só prejudica os Estagiários. Mas esses são clientes que bem podem tratar como querem. Não têm outro local de abastecimento. Nem livro de reclamações.

09 abril 2006

8 intervenções, 9 intervenções, 10 intervenções... tra la la

Estive a pensar. Não serei demasiado injusto com a OA? Se calhar, a nossa OA quer mesmo o nosso bem. Será uma forma de amor à moda antiga, de pai tirano. Um amor que obriga ao castigo para ensinar uma lição de vida, para tornar mais fortes as crias. Um amor envergonhado de si próprio, mas orgulhoso dos seus pupilos, ocultado por debaixo de um rigor excessivo.

a comover-me palavra, se [eu] tivesse coragem, se ele [o pai] tivesse coragem, se tivéssemos coragem beijava-o
António Lobo Antunes, Eu hei-de amar uma pedra


As intervenções ainda. Dez são as necessárias. Ora, para serem feitas, o Estagiário deve esperar receber uma carta da sua OA, no escritório do seu Patrono, com a indicação do dia e do local onde deve apresentar-se, e onde deve ficar absolutamente disponível para tudo quanto venha a ser exigido dele.
Se isso lhe servirá de alguma coisa, se será contabilizado como efectiva intervenção é algo que não interessa nada. Depois de decidirá, alguém decidirá. O princípio de que as normas devem ser certas, claras e dispondo para o futuro aparentemente não se aplica à OA.
É dever do Estagiário comparecer. Pede licença ao seu Patrono, promete compensar aquelas horas não pagas num outro dia, com trabalho árduo e dedicado, ficará eternamente grato. E lá vai apresentar-se no local da intimação. Com os codigozinhos debaixo do braço, preparado para tudo.

O problema é este: os Estagiários só podem ter intervenções se escalados pela OA. Com muita frequência, as escalas da OA não são garantia de intervenção. É igualmente frequente que, no final do Estágio, o infeliz não tenha reunido todas as intervenções que precisa. Mesmo tendo estado presente em todas as escalas para as quais foi convidado pela OA. É que há locais onde a probabilidade de ter algum participação é mais elevada que noutros. E há dias em que há mais actos que requerem a presença de Advogados que outros. Se o Estagiário tiver a sorte do seu lado, não terá problemas em conseguir as dez intervenções. Se tiver a OA, pode bem acontecer que fique aquém das dez.
Para mais, com as interpretações que os Senhores Funcionários da OA fazem do que deva ser considerada uma intervenção, é mais difícil ainda saber se foram conseguidas dez ou não e, pior, sabê-lo em tempo de poder fazer algo.
Chega o Senhor Doutor Advogado Estagiário à OA, nervoso, e entrega uns papelitos que andou a preparar.

- Veja lá a Senhora! Trouxe aqui uns papelitos, acho que está tudo. Veja lá a Senhora!
- Ó Senhor Doutor! Dois reconhecimentos?! Então o Senhor Doutor não sabe? Era a segunda pergunta mais frequente! Isto não são intervenções, Senhor Doutor! E aqui não tem o número do processo? Senhor Doutor? Isto não está bem, Senhor Doutor! Isto assim não pode ser! Eu não posso aceitar isto! Senhor Doutor! Vai tudo para trás!

Sendo certo que ter ou não intervenções processuais não depende do Estagiário, não deve ser penalizado por isso. Se a OA não tem condições de assegurar as dez intervenções a todos os Estagiários, então deve exigir menos. Ou deve aceitar Estagiários com menos intervenções. Não é resposta a que têm dado.

- O Senhor Doutor não tem as intervenções? Tem um bom remédio: prorroga o Estágio. Senhor Doutor!

Dois anos depois do final do curso, dois anos em que a vida esteve mais ou menos suspensa, o Estagiário deve perder mais tempo, ainda, porque a OA faz asneira e não assume as suas responsabilidades.

Estive a pensar. Não fui injusto. A OA não faz o mínimo sentido.

08 abril 2006

Intervir... ou não intervir?


Os Senhores Doutores Advogados decidiram que o Estagiário deve ter 10 intervenções em processos judiciais. Ora, o que sejam intervenções é uma coisa sobre a qual a doutrina se decide. A doutrina leia-se, os outros Senhores que trabalham na OA. Não sei se são Advogados, Advogados Estagiários, Engenheiros, Médicos, Astrofísicos, Matemáticos, ou outra coisa qualquer. É que no Regulamento Nacional de Estágio (RNE) não existe nenhuma definição para o que isso seja. O que faz sentido: o RNE não explica o que é uma coisa a que nele se faz referência, e que é essencial.
Senhores Doutores Advogados, é boa técnica legislativa definir no diploma os conceitos que nele vão ser usados.

Ora, parece que o único local onde o Estagiário pode saber o que é uma intervenção é um sítio na Internet, uma coisa chamada formare, num capítulo que se chama FAQ’s, ou seja, nas perguntas mais frequentes. Como no Continente online, se quiser saber se entregam as compras gratuitamente na minha morada, pergunto à OA se aquela participação, naquele processo, pode ser considerada.

O senso comum diria que intervenção num processo seria qualquer participação que o Estagiário nele tivesse. E, já agora, em qualquer fase do processo. Pois se é exigida, por lei, a presença de um Advogado, então o acto em que participar deveria ser contabilizado.
Ah, mas isto é a OA. Não é assim. Não é só isto.

Participar num reconhecimento judicial não conta. Participar num interrogatório que seja feito por um funcionário judicial não conta. Um adiamento de audiência de julgamento, se foi decidido por iniciativa do juiz não conta.

Qualquer destes actos é relevante aos olhos da lei. Não é relevante aos olhos da OA. E a opinião da OA é que interessa. Não sejamos legalistas inflexíveis. É a justiça do caso concreto que importa. QUE JUSTIÇA?!
O reconhecimento tem formalidades especiais determinadas no Código de Processo Penal. Para garantir o cumprimento dessas formalidades, lá está o Senhor Doutor Advogado. Pois pode lá estar, passar lá o dia, fiscalizar sete reconhecimentos, arguir dez nulidades, impedir vinte e três irregularidades, que é absolutamente irrelevante. Para a OA é como se não estivesse lá.

Pode o Ministério Público delegar a sua competência num funcionário judicial, que o interrogatório não valerá como intervenção. Se for o Senhor Manuel, Ministério Público, é contabilizado. Se for o Senhor Joaquim, funcionário judicial, não é compatibilizado. O mesmo acto. O mesmo tempo dispendido. A mesma aprendizagem (ou não). Mas não conta.

A audiência é aberta, o juiz oficiosamente promove o adiamento da audiência, as partes pronunciam-se. Não é contabilizado. Porque devia ser o Advogado Estagiário a promover o adiamento. Por acaso o juiz adiantou-se. Azar. Dizem na OA:
- Quem vai ao ar, perde o lugar! :-p
A tentação é inverter todos os princípios: deixa de interessar qualquer interesse ou direito do arguido, não importa nenhuma estratégia.
- Meritíssimo, ande lá com isso, que eu preciso desta intervenção!

Pior: não tenho a certeza quanto a isto que digo. Corre à boca pequena que estas coisas não contam. Mas há opiniões contrárias. E há o primo da vizinha do terceiro andar da rua que fica ao pé do mercado onde mora uma amiga do irmão de um sobrinho da afilhada de curso da melhor amiga do namorado de uma colega da faculdade da cunhada do padrasto de um amigo meu, que disse que talvez não seja assim. Disse ele:
- Talvez não seja assim.
E o pobre Estagiário não sabe, a uma semana de terminar a segunda fase do seu estágio (ou não), se tem ou não as dez intervenções que os Senhores Doutores Advogados decidiram que devia ter. Mas sabe que depende inteiramente da Senhora que lhe receber os documentos.
- O Senhor Doutor devia ter perguntado...
- Os Senhores Doutores deviam ter escrito.
Sucedem-se as desconsiderações da OA aos seus Estagiários. Ninguém está ali por gosto, está visto: nem a OA tem brio no que (não) faz, nem os Estagiários qualquer interesse na OA.

Convém fazer todo o mal de uma vez para que, por ser suportado durante menos tempo, pareça menos amargo, e o bem pouco a pouco, para melhor se saborear.
Maquiavel, O Príncipe

06 abril 2006

Emílio

São necessárias dez consultas a processos, entre outras coisas, para terminar a segunda fase de estágio. Isto é, para poder ser candidato a fazer o exame de agregação, além de ter passado os primeiros exames, de ter estado 18 meses... a trabalhar, de ter reunido dez intervenções, de entregar cinco relatórios do seu Patrono, o Estagiário tem que apresentar dez relatórios de consultas a processos.
- Não se esqueça de deixar o chequezinho à saída, Senhor Doutor!
Dez relatórios de consultas a processos. Um bom Advogado deve, na sua juventude, ter passado parte do seu tempo com a cabeça enterrada em dez processos. E isto é se quiser ficar dotado das capacidades que se exigem ao causídico. Para isso, também, serve a OA: para explicar ao jovem cabeça de vento como deve ocupar o seu tempo.
- Fizeste o t.p.c., meu rico filho?
- Fez os dez relatórios, Senhor Doutor?
Anda o Estagiário a arrastar-se pelos tribunais, batendo à porta das secretarias, com um ar penitente e humilde, pedindo para ver um processozinho. É mesmo assim:
- Boa tarde. Eu sou Advogado Estagiário, a terminar a segunda fase, e gostaria de ver uns processozinhos, se não se importar.
Em geral, os Senhores Funcionários não se importam.
- Então e quais quer?
- Uns que para aí tenha... Que não lhe façam falta...
[E tem uma moedinha? Qualquer uma que para aí tenha... Que não lhe faça falta...]
Que sentido tem isto que eu não esteja a ver? Que utilidade terá ler dez processos? De pessoas que não conheço. De um caso que não conheço. De motivos que não conheço. De uma estratégia que não conheço.
E são só três de cada matéria. O Senhor Doutor não se deve alambazar! Se só gosta de família, leva com mais administrativo para não se habituar mal.

"A educação pública, sob regras prescritas pelo governo e sob a responsabilidade de magistrados designados pelo soberano, constitui, pois, uma máximas fundamentais do governo popular legítimo. Se as crianças são educadas em comum no seio da igualdade, se tiverem imbuídas das leis do Estado e das máximas da vontade geral, se forem instruídas no sentido de respeitá-las acima de todas as coisas, se estiverem cercadas de exemplos e de objectos que incessantemente lhes dizem da terna mãe que os alimentou, do amor que têm por eles dos bens inestimáveis que recebem dela e da retribuição que lhe devem, não duvidemos que desse modo aprendam a se querer mutuamente como irmãos, a não querer jamais senão o que a sociedade deseja, a substituir o estéril e vão palavreio dos sofistas pelas acções de homens e de cidadãos a se tornarem um dia os defensores e os pais da pátria de quem por tanto tempo foram filhos".
Rousseau, A Educação de Emílio

Pego na resma de processos que o Senhor Funcionário amavelmente me dá, e levo-a para a mesinha do fundo, virado para a parede. Até as orelhas de burro sinto na cabeça.
Leio tudo com muita atenção. Tomo notas. Escrevo um relatório. Um resumo. Um sumário. Uma síntese. Uma súmula.
O resultado teórico deveria ser que ficasse mestre em... qualquer coisa relacionada com Direito. O resultado prático é um aborrecimento que não tem tamanho. Uma irritação descomunal.
A irracionalidade tira-me do sério.

04 abril 2006

Regulamente-se / Regula mente-se


Estive a ler o Regulamento Nacional de Estágio. Ok, não li. Não consegui terminar. Mas procurei-o. E guardei-o. E li as letras grandes, à falta de bonecos. Li esta epígrafe e aquela. Isto deverá ser tido em conta em minha defesa.
A minha intenção era ler tudo. Acho que um Advogado Estagiário deve ler o regulamento com base no qual a sua Ordem o quer educar. Como diria o velho Juiz Roy Bean, a personagem de um dos livros do Lucky Luke inspirada no verdadeiro Juiz, ao ler o Código Civil pela primeira vez:
- Deveria ter lido este código mais cedo! Está cheio de coisas interessantes e até mesmo úteis para um juiz!

Peguei no Regulamento e, como é lógico, comecei pelo início. Erro. Deveria saber que nada na OA segue uma lógica que o comum dos mortais perceba.

Artigo 1º
Fins do estágio
1. Cabe ao Conselho Geral, no exercício das suas competências estatutárias e em obediência às normas programáticas estabelecidas no Estatuto da Ordem dos Advogados, definir os princípios orientadores do estágio e da formação do advogado estagiário, visando a formulação de um modelo de estágio que sirva os objectivos de rigor e exigência pedagógica e científica, assente numa lógica de simplicidade de procedimentos burocráticos e administrativos.
2. O estágio tem por objectivo garantir uma formação adequada ao exercício da advocacia, de modo a que esta seja desempenhada de forma competente e responsável, designadamente nas suas vertentes técnica, científica e deontológica.

Depois de ler isto, desconcentrei-me um pouco. Não estou certo se o facto de estar a rebolar pelo chão, em estridentes gargalhadas, com uma lagriminha ao canto do olho, teve alguma coisa que ver com essa incapacidade em me centrar.
Permitam-me chamar a atenção para alguns pormenores.
O objectivo parece que é promover um estágio que sirva os objectivos de rigor e exigência pedagógica e científica. De quem? De quê? Não são quaisquer objectivos de rigor e exigência. São os objectivos. Que não se esclarecem. Serão os da OA, talvez. Atendendo, está visto, ao pouco rigor e exigência com que este Regulamento foi feito, temo o pior.

Também me diverte que seja preocupação do Conselho Geral fazer um estágio de simplicidade burocrática. Rebento de riso.
Dois anos de estágio.
Com duas fases.
Cada uma com exame obrigatório.
Relatórios de Patrono. Trimestrais. Em modelo aprovado.
Escalas.
Consultas. Três de cada matéria no máximo.
Intervenções. 10 pelo menos.
Créditos obtidos em acções de formação.
Diria que precisamos uma ideia tão brilhante quanto o Simplex: 333 medidas para desburocratizar!

Este brilhante estágio não burocratizado teria como objectivo formar o jovem licenciado no sentido de poder desempenhar a sua profissão, se for disso considerado digno, de forma competente e responsável, designadamente nas suas vertentes técnica, científica e deontológica. Ora bem, as vertentes técnica e científica, se são diferentes, já estudei na faculdade. Muito obrigado pela lembrança, mas já tenho. A experiência limá-la-á, mas mais formação talvez se não justifique.
A vertente deontológica talvez faça sentido. Mas então, não inventem mais matérias que esta para ocupar as horas de aulas na OA. E algumas aulas devem ser suficientes. Com deontologia a sério. Não me expliquem outra vez que a quota litis é proibida e que o Advogado mais novo visita o mais velho. Dois anos, ainda que seja para percorrer todo o Estatuto da OA, parece muito. Mas eu sou impaciente, é verdade.
De todo o modo, Senhores Doutores Advogados, ser boa pessoa não se aprende. E ser bom Advogado, na vertente deontológica, é só uma consequência de ser boa pessoa.

Já agora, uma curiosidade: sabem que não existe nenhum artigo, neste Regulamento, com os direitos dos Advogados Estagiários, mas há dois com os deveres?

Mas o pescoço de K. tinha à sua volta as mãos de um dos senhores, enquanto que o outro lhe espetava a faca no coração e aí a rodava duas vezes. Com os olhos moribundos, K. ainda viu como os senhores, de faces coladas uma à outra, mesmo em frente do seu rosto, observavam a sentença. “Como um cão!” disse ele, era como se a vergonha lhe devesse sobreviver.
Franz Kafka, O Processo

03 abril 2006

Ó fiz cioso (trabalho)!

O senhor legislador pensou, pensou. Pensou, pensou, pensou. Pensou. E fez uma lei para garantir o acesso ao Direito a todos os cidadãos. Até lhe chamou assim: Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais. A intenção parece boa, e parte de um princípio que ninguém ousa rebater:

1- O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos.
Sic artigo 1º/1, Lei 34/2004, de 29 de Julho

Uma vez que outro legislador, o Constituinte, o “Grande” proibiu a vindicta privata, tornou obrigação deste legislador, o “Pequenino”, a garantia de que a Justiça seja feita. Em vez de cada um lavar a sua roupa suja, suponhamos um gigantesco lavadouro público.
Ora, os Advogados, até os Estagiários, fazem parte do processo de administração da Justiça. Quer se queira quer não, bem ou mal, não há Justiça sem Advogados. Nem Advogados sem Justiça, também é verdade.

Em suma, a quem não tiver Advogado ser-lhe-á nomeado um. Teoricamente, todos os Advogados inscritos são potenciais Advogados oficiosos. É como a lotaria popular: anda à roda, e os meninos gritam a fortuna revelada.
E canta um:
- Joaquim Lopes da Silva!
E canta logo outro:
- Dr. Gervásio Coutinho e Gomes da Fonseca Vasconcelos Abrunheiro!
E o último:
- O-fi-ci-oooooo-so!
Os sorteados são, grande parte das vezes, Advogados Estagiários. Como se lembram, o Advogado Estagiário é aquela espécie, cuja época de caça abre uma vez por ano para controlar a sua procriação – lá para o início do Verão, aí por volta de Junho ou Julho – muito pouco digna de confiança, que precisa da tutela da OA e do seu M.I. Patrono para fazer alguma coisa de jeito. E vai de lhe nomear oficiosos.
- Sai um oficioso para o Estagiário da mesa do fundo.

O desempenho do Estagiário relativamente ao oficioso não é avaliado. A única coisa prática que o Estagiário realmente faz, que o põe à prova, não é tida em conta pela OA. Porque o que importa, não tenhamos ilusões, é que o jovem saiba quando é o próximo congresso dos Advogados. E quando deve pagar as suas quotas.
Para mais, se assim se entrega a causa do cidadão ao Estagiário, sem nenhum tipo de controlo, é porque ele merece, afinal, alguma confiança. Ou então é porque o cidadão que não tem Advogado não merece verdadeira tutela.

É justo supor que para a lei todos os cidadãos são iguais, todos merecem a mesma protecção. Então, é justo supor que o Estagiário é tão capaz de proporcionar aconselhamento jurídico quanto o Advogado. Então, o estágio da OA não acrescentara nada à competência do Estagiário. Então, a OA é inútil.

A primeira operação do médico não será ao coração. Mas quem decide é o seu superior hierárquico. E se o não tiver, quem decide é o mercado. Mas nós temos a Santa Madre OA.

O temor do Senhor é o princípio da sabedoria. Os insensatos desprezam o saber e a instrução.
Sic Bíblia Sagrada, Antigo Testamento, Provérbios, 1,7

02 abril 2006

Drama?!


Confesso: gosto de cerimónias, de protocolo. Como aquelas que se há ainda nos tribunais. Divertem-me.
Ora levantem-se, faz favor, que aí vem o Meritíssimo Senhor Doutor Juiz em Direito.
- Podem sentar-se.
Todos de preto, com as becas e as togas, cada um com seus folhos, que não se chamam assim, naturalmente. E o barrete, que se não usa já. E é pena.

O barrete é também preto, de formato octogonal, com 11 centímetros de altura e com uma cercadura de veludo, de 3 centímetros, sobreposta de outra de cetim carmezim, de 1 centímetro, ambas na base da copa, tudo conforme o modelo junto.
Sic art. 3º do Regulamento do Trajo e Insígnia Profissional
Entra o Meritíssimo e o Senhor Magistrado do Ministério Público. Entram pela mesma porta, rindo da mesma anedota. Mas são órgãos completamente separados: um acusador e o outro julgador.
- Ah, mas todos procuramos a mesma verdade! E assim...
Também o Advogado de defesa, mas a ele ninguém conta anedotas.
- Com os cumprimentos a este Tribunal e com a devida vénia, Meritíssimo, gostaria de pedir alguns esclarecimentos à testemunha.
(Drama?! Drama é um homem querer matar a sua sede, já sabemos.)
O estágio a isto obriga.
Mas, e se eu não quiser fazer direito penal na minha futura carreira? Para ser fiscalista não preciso saber onde se senta o Advogado de defesa. Nem para fazer família. Ou comercial.
- Ah, mas o direito é um edifício uno! E tal...

Pode acontecer que no estágio se trabalhe só com comercial. E as provas do exame de agregação serão sobre direito penal. Pode acontecer que nunca mais o Advogado toque num processo crime. Mas se não souber o que a OA entendeu ser importante sobre penal, não fará nada em Direito. A OA é que sabe o que é bom para mim!

E se o estágio serve (servisse) para nos preparar para alguma coisa, não deveria ser feito antes de qualquer actividade? Ou não se justifica nenhuma preparação, ou o trabalho feito durante estes dois primeiros anos não se aproveita para nada. Realmente, não só o estágio não deve ser pago, como ainda devia o imberbe Advogado pagar ao seu patrono. A formação da OA também é (bem) paga.
Sendo contemporâneo ao início do trabalho num escritório, o que é que o estágio acrescenta? Ou o que acrescenta o patrono? Ambos dão formação prática, teoricamente. Quanta tutela precisará o Advogado Estagiário? Esse bicho completamente idiota, mentecapto, que sete anos depois está quase pronto para dar os primeiros passitos. Sozinho!

Um estágio que se dedica a dar formação apenas numa área não merece esse nome. Ou então, o estagiário que escolha em que área quer fazer o estágio. E que preste provas nessa área. Apenas.
- Peço justiça.