30 maio 2006

Ó C.!!

Tanto quanto sei, não aconteceu. Mas podia. Pode.


Exmo. Senhor Presidente
do Conselho Distrital da OA

Eu, abaixo assinado, Senhor A., pai de dois filhos, B. e C., recém licenciados ambos, casado com D., residente na Quinta ao Fundo da Vila, de quem vem pela N1, passando pela rotunda do chafariz, venho requerer a V. Senhoria que se digne nomear um defensor oficioso ao ora Requerente.

Sou pai de dois rapazes, B. e C.. O B., mais velho, mais ajuizado, mais sensato, mais responsável, lá escolheu ser médico. Fez o seu curso, com a graça de deus e o meu dinheiro. Lá está, encaminhado na vida. Trabalha no centro de saúde. Vai casar com uma senhora professora primária, escriturou o seu T2 na ponta da linha de Sintra, comprou um carro à noiva, quase novo. O rapaz faz-se.

O meu C. meteu na cabeça em novo que havia de ser Advogado. Ainda achei que era uma coisa passageira, como quando quis ser artista de circo. Mas não. Tanto andou, que lá foi para a faculdade.
O meu mais velho fez o que tinha a fazer. Estudou cinco anos, comprou os livros que precisou, leu-os, aprendeu-os. Se a gente se queixa daqui, logo ele diz que deve ser dali. E foi trabalhar. O meu mais novo não sei a quem saiu.

- Ó C.! – diz a gente – Mas quantos livros precisas tu para essa disciplina?!

Que tem que ser, que é preciso, que lhe mandam. E lá vamos, a mãe e eu, ver onde o podemos ir buscar. E se a gente se quer aconselhar com ele, não sabe. Que depende, que pode ser uma coisa e outra, que tem que ir procurar. O rapaz não estuda!

E deve andar a enganar-nos. Até perdoamos que seja estúpido, mas mentir ao pai e à mãe é que não está certo. Diz que terminou o curso, levou-me lá à cidade ver o patriarca no ecrã gigante, e agora diz que precisa mais dinheiro para um estágio qualquer.

- Ó C.! Vem para junto da gente! O teu pai dá um jeito à garagem e tu abres um escritório.

Que não pode ser, que faltam dois anos, que ainda não pode. Não criei um filho para ser mentiroso!
Não podemos tirar mais da reforma. E a gente:

- Ó C.! Se não estudaste, estudasses!

Há alturas em que o bem deles é mais importante que o bem que lhes queremos. Cerrei os dentes, e a carteira.

Agora, recebo em casa uma carta de um Senhor Doutor a dizer que me apresente, que vá, que responda, que esclareça. Diz a carta que o meu mais novo pediu a um Juiz que me condene a continuar a sustentar-lhe o vício do Direito. Diz que trabalha num escritório 8 e 9 horas por dia. Que não recebe. Que trabalha nas portagens de Alverca ao fim de semana. Que tem que pagar a renda do quarto onde vai para dormir. Que tem que pagar cursinhos a que o estágio obriga. Que o dinheiro não chega. Que está cansado. Que está falido.

- Ó C.! Se não estudaste, estudasses!

Diz que violei o artigo 1880º do Código Civil. Que sou obrigado a ajudá-lo enquanto ele estiver em formação. O rapaz já lá anda há cinco anos...!
Artigo 1880º
Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não tiver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o número anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.

Vejam lá os Senhores se me arranjam um Senhor Doutor Advogado que me defenda. Que vá dizer estas coisas ao Juiz. Sempre ajudei o meu mais novo como fiz com o mais velho, que são ambos meus filhos. Um já é Doutor, o outro nunca mais lá chega! Que desgraça a minha, metido com a justiça, agora depois de velho. Para que havia de dar na cabeça ao rapaz!
Ó C.!

24 maio 2006

Bidú bidú!

Há três coisas de que gosto nas crianças. E essas características reconheço-as também na OA. Pasmem.
Ora reparem.

As crianças têm uma completa e inabalável confiança nas pessoas. Não têm qualquer noção de dúvida nem de incerteza. E isso dá-lhes uma serena paciência.

- Mãe, ensina-me a ler!
- Quando fores mais velho, filho!

E ele espera ser mais velho. Crente e absolutamente seguro de que, se a mãe diz, assim será. E não se inquieta. Isso basta-lhe para esperar sossegado.

As crianças falam com quem regressa como se retomassem uma conversa no ponto em que ficou. Como se não tivesse havido separação. Como se não fosse preciso compreender nem perdoar a ausência.

- E vens comigo ver o filme à minha casa!

Como quem acaba uma brincadeira e planeia outra.

As crianças têm ideias próprias. São mesmo novas pessoas. Surpreendem-nos porque não conhecíamos nenhum indivíduo assim.

- Mãe, o Pai Natal tinha os sapatos do Padrinho...

Olhando algumas crianças não posso deixar de pensar na nossa OA. O mesmo ar de riso olhando a gente. O mesmo nariz empinado em jeito de desafio. A mesma gargalhada quando sabe que fez asneira. A mesma aprendizagem. A mesma tentativa de ir abusando da nossa paciência.

Como um
- Não me apanhas, não me apanhas!
ao contrário:
- Vou-te apanhar, vou-te apanhar!

Veja-se o caso da OA agora.
A mesma confiança bacoca.

- Senhor Doutor, está tudo no Regulamento! Não se preocupe com nada! Estão lá todas as respostas!

Com um sorriso de orelha a orelha, diz a Senhora, lá na OA.

Note-se a mesma capacidade para retomar a conversa, ainda que interrompida por meses.

- Não pode ser, Senhor Doutor! Vai tudo para trás! Está tudo mal, Senhor Doutor!

Repare-se na mesma capacidade de sempre dizer algo que surpreende, que não lembraria ao Diabo.

- Passe lá mais um chequezinho, Senhor Doutor! Por aquela acção de formação que não frequentou. Senhor Doutor!

- Que gracinha! – dizemos nós à criancinha.

Até ao dia, que correu pior, em que perdemos a paciência. Dois berros à canalha, castigo durante um mês. E cara alegre! Pergunto-me, como educador preocupado, se não seria tempo de dar dois berros à OA. Para seu bem. Para a educar. Receio que possa ser tarde. Se em criança é assim, temo pelo que se possa tornar na puberdade.

- Meu pobre filho. Meu pobre filho sempre tão triste. Quanto custa viver! Às vezes ponho-me a pensar no que tenho sofrido desde que nasci. E no que sofreu o teu pai. E no que sofre toda a gente pobre. E então eu digo se não era melhor que tivesses morrido em pequeno. Às vezes ias para a rua, como os teus irmãos, e passavam os carros, mas nunca nenhum de vós ficou debaixo.
Vergílio Ferreira, Manhã Submersa

21 maio 2006

Em busca da competência perdida

Um Ilustríssimo Colega dirigiu a minha atenção, como é seu hábito e minha fortuna, para uma pertinente questão: que raio acontece à competência do estagiário que não passar no exame de agregação?
A partir da segunda fase de estágio, nos termos do artigo 189º do EOA, o Estagiário assume algumas competências. Porém, é apenas uma situação temporária. É que o Estagiário também tem um prazo de validade.

A consumir de preferência antes de: ver cédula (pré-) profissional.

Pode acontecer a curiosa situação de ser o Estagiário nomeado defensor oficioso num qualquer processo, e não ter competência quando for finalmente necessário agir. A competência que tinha no momento da nomeação deixou de ter no momento do julgamento. Perdeu-a. Tiraram-lha.

O Estagiário pode não querer fazer novo exame. Ou não o fazer logo. Pode não ter dinheiro para voltar a inscrever-se. Foram dois anos sem receber salário, a pagar renda, transportes, alimentação, roupa. Enfim, pequenos luxos. Os pais não lhe perdoam ter cursado direito. As bolsas são atribuídas a estudantes, não a estagiários. Não sabe se está em condição de pedir alimentos a alguém, nos termos do artigo 2009º do Código Civil. Seria preciso um Advogado. E ele não é.

A minha tentação é tentar perceber, antes de mais, porque tem o Estagiário esta competência. Não sendo respostas, gostaria de partilhar algumas explicações possíveis. Alerto para o facto de que, referindo-se à OA, o possível não deve ser interpretado como seria em qualquer outro contexto.

1. Atribuem-se aos Estagiários os casos menos importantes. (Se fizer asneira o prejuízo não é grande.)
Não pode ser por isto. O Advogado tem muitos clientes, mas o cliente só tem um Advogado. Ser condenado no pagamento de uma multa para a qual não tem rendimentos, ter a carta de condução apreendida ou ficar em prisão preventiva é um prejuízo enorme. Ainda que possa ter pouca relevância penal, tem imensa relevância pessoal.
A OA não ficaria, por certo, sossegada se não soubesse todos os casos diligentemente acompanhados. E por isso os entrega aos seus estagiários.

2. Atribuem-se aos Estagiários os casos perdidos. (Não vale a pena perder muito tempo, nem a paciência de Senhores Doutores Advogados mais experientes.)
Não pode ser por isto. A menos que o Tribunal de Pequena Instância Criminal seja uma gigantesca encenação, e não consta que Portugal invista tanto na cultura, ali se discute mesmo a responsabilidade penal dos arguidos. Se a absolvição é difícil, mais razão haveria para se convocar o mais experiente dos causídicos.

3. Atribuem-se casos aos Estagiários porque o acesso à justiça, que a Constituição quer garantir, inclui o direito a um Advogado. (Os casos oficiosos dos Estagiários permitem que a OA pareça empenhada em democratizar a justiça.)
Não pode ser por isto. Estariam a usar os Estagiários numa gigantesca campanha de marketing. A instrumentalizá-los em função de interesses de uma classe à qual ainda não pertencem. A empatar dois anos de vida destes recém licenciados para manter uma imagem.

4. Atribuem-se casos aos Estagiários porque lhes é reconhecida alguma capacidade técnica e deontológica para participarem na administração da justiça.
Não pode ser por isto. Mas gosto desta. Sempre foram cinco anos de curso. Com a breca! Alguma coisa deve o rapaz ter aprendido.

Diria eu que, afinal, o que habilita o Estagiário de segunda fase, é ter passado no exame... da primeira fase. Perdoar-me-ão a simplicidade de raciocínio, que muito diz da minha pouca capacidade para advogar, mas: fez, está feito. Nenhuma influência poderia ter um segundo exame no resultado do primeiro. Tal como não passar no segundo ano da faculdade me não obriga a voltar a fazer o primeiro.

De jure condendo, para sairmos do campo do absolutamente incompreensível e passarmos apenas para o do absolutamente absurdo, a primeira fase de estágio deveria habilitar o Estagiário à prática dos actos que o artigo 189º EOA refere. Independentemente de qualquer outro exame. Seria preciso alterar a Lei dos Actos Próprios dos Advogados. Corrigi-la, afinal.
Que raio acontece à competência do Estagiário, portanto?

É um plano absolutamente diabólico, Humano, meu caro, simplesmente humano, o diabo não faz planos, aliás, se os homens fossem bons, ele nem existiria.
José Saramago, O Homem Duplicado

15 maio 2006

História de encantar

Ouvi uma história. É o costume: um primo de um amigo de um vizinho de uma cunhada de uma namorada de um colega de faculdade da irmã do melhor amigo do tio de um caloiro de farmácia que conhece o estagiário em causa.

Era uma vez, um jovem estagiário. Este jovem estava a terminar o seu estágio. Antes de entrar na idade adulta da Advocacia, tinha que realizar com sucesso um ritual de passagem. Estava assim escrito. E não havia nada que ele pudesse fazer para contornar esse obstáculo. Consistia, mais ou menos, em juntar uma grande quantidade de papel e em entregá-lo num determinado sítio. Também estava escrito.

O moço dirigiu-se, como era sua obrigação, ao Conselho Distrital de Lisboa da OA, com todos os relatórios, requerimentos, cheques e cópias que a OA entende ser necessário. Como estava escrito. Conferiu várias vezes, ordenou, encadernou, fotocopiou. Fotocopiou outra vez e voltou a conferir. Colocou tudo numa bonita pasta do escritório do seu patrono, dentro da malinha que a mãe lhe ofereceu no final do curso. E foi para a fila. Cedinho, para se despachar quanto antes, que o patrono está à espera.

Quando chegou a sua vez, prazenteiro, mostrou à senhora tudo quanto tinha feito com tanto rigor e tão boa vontade.

- Veja lá a senhora se está tudo!

Não estava. Uma imprecisão num dos relatórios do patrono.

- Isto está tudo mal! Não pode entregar hoje!

Ora, sendo um relatório do patrono, teria que ser o patrono a elaborar novo relatório. Diz a lenda, que o patrono deste jovem e promissor estagiário estava ausente do país. O Senhor Doutor Advogado só voltaria depois de terminado o prazo para a entrega de todos os papeis. Em pânico, o estagiário atirou-se para o chão, em desespero, implorando à senhora que lhe desse outra oportunidade, que lhe dissesse como poderia resolver aquela situação.

- Faça um requerimento! Tente! Depois lhe dirão!

Tremendamente aliviado e agradecido, o estagiário rastejou até uma folha de papel e escreveu algumas linhas.

Venho por este meio, faça favor, pedir a V. Exa., faça favor, que me deixe entregar estes papelinhos um pouco mais tarde. Faça favor. É que o meu patrono não está no país, faça favor, e é necessário que assine um dos papelitos. Faça favor. Se Vossa Mercê se não importar, eu volto cá outro dia, faça favor, quando já estiver tudo em ordem.

Mais ou menos isto.
Isto terá acontecido no dia 3 de Maio.
O estagiário voltou para o seu escritório, e aguardou a chegada do patrono e da resposta ao seu requerimento. Passou dias sem saber se poderia ser recebido no mundo dos adultos ou não. Se estaria pronto para a vida a sério.

A resposta veio muito mais tarde.
Consta que o requerimento feito no dia 3 de Maio foi a despacho no dia 5 desse mês. Quem o recebeu, leu, pensou muito e decidiu deferir.

Que o estagiário entregue os papelinhos até ao dia 12 de Maio.

Estava o jovem estagiário salvo! Tinham-lhe dado uma segunda oportunidade!
Porém, o ofício que acompanha este despacho tem a data do dia 10 de Maio. Enquanto vai e não vai para o correio, enquanto é enviado e não, enquanto é entregue no escritório do estagiário e não, vão passando os dias. O estagiário recebeu a carta, e o despacho, no dia 15 de Maio. Entre a primeira e a terceira linha percebeu que podia apresentar os papelinhos, mas o prazo, excepcional, o último, tinha passado.

A carta que recebeu não é registada. Não tem aviso de recepção. Não há forma de demonstrar em que dia recebeu a carta. Só pode apontar as datas, e fazer novo requerimento.

- A senhora repare: se a carta foi escrita no dia 10 de Maio, ainda que tenha sido enviado no próprio dia, chegaria em dois dias. No próprio dia do prazo. Mas não chegou sequer nesse dia. E houve um fim de semana também. Os serviços postais não funcionam ao fim de semana.

Imagina-se o que o espera:

- Faça um requerimento! Tente! Depois lhe dirão!

Já se sabe: a gente mete-se com Advogados, e é isto.

Ora, o que a justiça quer é comer. Certo e sabido: vai-se ter com o Dr. Valério a Murça, e é logo:
- Você está cheio de razão, alma de Deus! Ponha a questão, que não há quem lha perca. Se quiser, passe-me uma procuração, deixe trezentos mil reis para preparos, e o resto é comigo.
Miguel Torga, Contos da Montanha

10 maio 2006

Aqui d'El-Rei!

Exmo. Senhor Magistrado
do Ministério Público
AR, advogado estagiário, com domicílio profissional no primeiro escritório que lhe apareceu, solteiro que não pode sustentar nenhuma família, com número de identificação fiscal só para poder abrir uma conta bancária onde a mãe deposita a mesada,

vem apresentar

queixa crime

contra

OA, organismo absurdo, pessoa colectiva número 123-666, com sede ali para os lados de São Domingos, mas omnipresente na vida dos estagiários,


O que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:

I. Dos Factos
1. O Queixoso frequentou a licenciatura em Direito,
2. em faculdade portuguesa,
3. regularmente constituída,
4. com o respectivo plano curricular homologado pelos organismos competentes.
5. De resto, a referida instituição de ensino é conhecida pela qualidade do seu ensino, e pelo mérito dos seus docentes.
6. E que não fosse.
7. Parece claro ao aqui Queixoso a irrelevância da apreciação quanto ao mérito da faculdade.
8. Não pode deixar de presumir-se a regularidade de uma instituição de ensino superior.
9. e da sua capacidade para conferir formação adequada na área em que se apresenta.
10. Tenha-se o referido apontamento por homenagem ao rigor e à verdade.
11. A licenciatura do ora Queixoso teve a duração dos habituais cinco anos.
12. Foi convicção dos 29 lentes que avaliaram o Queixoso que este adquirira os conhecimentos, ao menos, essenciais.
13. Discuta-se, se essa for a vontade de V. Exa., do nível de conhecimentos realmente adquiridos pelo Queixoso.
14. Faça-se a vontade do Respeitável Magistrado.
15. Porém, não se pode desde já deixar de notar a relativa inutilidade da discussão.
16. Por três motivos, para os quais peço desde já a paciência de V. Exa.
17. Desde logo, porque a avaliação é, por definição, uma acto de arbitrariedade administrativa, insindicável pelo direito.
18. Ademais, porque não pareceria menos que falta de respeito tentar encontrar falhas no julgamento feito pelos Professores Doutores em Direito.
19. Por último, porque a classificação relevante é apenas a qualitativa.
20. Está aprovado ou não.
21. Se a classificação de 10 valores
22. (já é menos?)
23. é suficiente para permitir a entrada na faculdade,
24. deve ser suficiente para permitir a entrada no mercado de trabalho.
25. Retome-se o essencial:
26. o ora Queixoso concluiu a licenciatura em Direito.
27. Em bom rigor, preparou este desfecho em bem mais que cinco anos.
28. A íntima resolução de ser Advogado teve-a o Queixoso desde muito cedo.
29. E em função dela se preparou,
30. Tomou as decisões necessárias,
31. Aceitou os sacrifícios exigidos,
32. enfim, em função dela moldou a sua vida.
33. E não se insulte o Queixoso mostrando-lhe paternalmente a vida que tem pela frente.
34. Bem o sabe.
35. Só se arrisca o que se tem.
36. Evidencie-se: o Queixoso não está arrependido.
37. Nem poderia estar, consciente antes da bondade das decisões que aqui o conduziram.
38. Não deixa por isso de se sentir indignado,
39. revoltado,
40. prejudicado,
41. injustiçado.
42. Relativamente à injustiça pede o Queixoso a intervenção de V. Exa..
43. Terminada a licenciatura, foi o Queixoso forçado a apresentar a sua inscrição como Advogado Estagiário.
44. Teve que o fazer no período que a Acusada entendeu estabelecer,
45. mediante a apresentação dos documentos que a Acusada decidiu exigir,
46. desde que fosse feito o pagamento da quantia que a Acusada achou por bem fixar,
47. e apresentado um patrono, um M.I. Advogado que aceitasse responsabilizar-se pelo acompanhamento do 48. novamente caloiro.
49. Tudo o Queixoso cumpriu,
50. não porque entendesse ser um complemento à sua formação,
51. não que fosse sua vontade,
52. mas porque a Acusada assim o determinou.
53. Sua sponte.
54. Seguiram-se meses de aulas.
55. Tão intensivas que só durante seis meses,
56. ou tão inúteis que só durante seis meses.
57. Seguiram-se três exames.
58. Que a Acusada fez,
59. apresentou,
60. corrigiu,
61. classificou,
62. reviu.
63. Recorde-se: a Acusada é uma associação pública representativa dos licenciados em Direito, nos termos do artigo 1º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
64. Representa.
65. Não ensina,
66. Não classifica,
67. Não forma.
68. Seguiu-se um ano de trabalho comunitário.
69. A expressão, confessa-se, não é axiologicamente neutra.
70. É dever do Queixoso, porém, levar ao conhecimento de V. Exa. a verdade como a vê.
71. O trabalho comunitário consiste em trabalhar com o patrono,
72. em fazer consultas jurídicas,
73. em prestar apoio judiciário,
74. em comparecer em escalas,
75. em ter clientes oficiosos,
76. em frequentar acções de formação.
77. Em troca: nada mais para além da experiência.
78. O Queixos reconhece o valor da experiência.
79. Mas reconhece valor a outras coisas,
80. nomeadamente, e para o que aqui importa, à maravilhosa experiência de ser pago pelo trabalho feito,
81. da qual já ouviu falar, e sobre a qual já leu livros vários.
82. Seguiu-se a elaboração de uma dezena de relatórios das participações que teve neste seu trabalho comunitário,
83. mais uma dezena de relatórios dos actos judiciais que tenha presenciado,
84. acompanhados de requerimentos vários,
85. e do pagamento de mais o que a Acusada entendeu ser devido.
86. Tudo reunido, entregue e aceite, é admitido o candidato a novo exame.
87. Seguiu-se um exame oral.
88. Tudo cumpriu o Queixoso.
89. Não por convicção de que tal fosse necessário,
90. não por ter decidido,
91. mas apenas porque a isso foi forçado pela Acusada.
92. A formação da vontade do Queixoso não se ficou a dever a uma ponderação rigorosa que tenha feito,
93. livre,
94. conscienciosa,
95. das vantagens e inconvenientes da sua inscrição na OA.
96. A sua decisão, por imposta, foi viciada.
97. Julga o Queixoso importante esclarecer neste ponto, se apenas o deixou subentender, uma nota relevante:
98. é do conhecimento do Queixoso a existência de todas as saídas profissionais que a licenciatura em Direito lhe oferece.
99. O Queixoso está bem informado quanto à sua existência,
100. quanto aos requisitos a preencher para lhes aceder.
101. Sucede que o Queixoso optou pela advocacia.
102. Não tinha que o fazer. Por isso se chama escolha.
103. Optar: exercer o direito de opção; decidir-se por; dar preferência. www.priberam.pt, claro.
104. O Queixoso viu-se, portanto, na obrigação de ter um comportamento que não pôde determinar,
105. que lhe foi imposto, sob ameaça de não poder exercer determinada profissão.
106. Desta imposição resultaram prejuízos morais que se não podem avaliar cabalmente,
107. e danos patrimoniais igualmente significativos.
108. A saber:
109. € 1.000 pagos para inscrições nos exames.
110. € 800 em acções de formação.
111. € 19.200 de dois anos de salários que se não receberam.
112. De danos morais entende o Queixoso nada pedir
113. com excepção de uma compensação de conteúdo semelhante ao prejuízo:
114. um pedido de desculpas por parte da Acusada.

II. Do Direito
115. Os factos descritos preenchem o crime de coacção, previsto no artigo 154º do Código Penal.
116. A Acusada, sob ameaça de que o estagiário não poderia ser Advogado, forçou-o à inscrição na OA,
117. e ao cumprimento do programa que ela própria determinou.
118. A coacção é um meio particularmente vil de determinar o comportamento do indivíduo.
119. Para mais, a concretização desta coacção importou a violação de alguns dos mais essenciais princípios do ordenamento jurídico português,
120. como são o princípio da liberdade de escolha da profissão a exercer que a Constituição da República Portuguesa consagra e tutela, nomeadamente nos artigos 13º, 59º, 80º e 81º.
121. Também o Código de Trabalho garante a liberdade na escolha e exercício da profissão no artigo 22º.

Tendo em conta o exposto, vem o Queixoso:
a) apresentar queixa-crime contra a Acusada, nos termos dos artigos 154º/1 do Código Penal e artigos 49º do Código de Processo Penal conjugado com o artigo 113º/1 do Código Penal, e ainda do artigo 119º/2, b’ do Código Penal;
b) formular desde já o pedido de indemnização cível, nos termos do artigo 71º do Código Penal. Nos termos do artigo 483º do Código Civil, vem o Queixoso pedir a condenação da Acusada:
a. ao pagamento de € 21.000 por danos patrimoniais causados;
b. à apresentação de um pedido de desculpa ao Queixoso, para compensação pelos danos não patrimoniais causados.
c) manifestar a intenção do Queixoso em se constituir como assistente no procedimento criminal, nos termos do artigo 68º/1, a’ do Código Penal.



Pede deferimento,

AR.

08 maio 2006

Só mais uma tentativa

Li algures que o Regulamento Nacional de Estágio foi alterado. Mais uma tentativa (falhada). Mais uma oportunidade (perdida). Eu sei que não devia parecer tão surpreso. Que a mudança já ocorreu há algum tempo. Que já devia saber. Que já devia ter lido o novo Regulamento. Tudo verdade. Mas não.
Parece que o estágio passou de 18 para 24 meses. E o exame oral é agora obrigatório. Para quem tiver 10 valores ou mais no exame escrito. Quem tiver menos volta à casa de partida, bem entendido. Nas faculdades ter determinada nota dá direito a dispensar o exame oral. Na OA dá direito a fazer oral.

O preâmbulo, que, dirão alguns constitucionalistas, não tem força de lei, explica porque se mudou o Regulamento: foram condensados os exactos momentos em que os requerimentos devem ser apresentados. Pronto... É um avanço...
O sistema de créditos que existia foi abandonado. Porque o estagiário abusou. É o costume: dá-se uma mão às crianças e elas tomam logo o braço todo. Generalizou-se assim a ideia de que o mais importante era somar créditos, em detrimento da ideia de que o importante era apreender conceitos e conhecimentos através de tais acções de formação, escolhidas criteriosamente. As acções de formação, se valem por si, não devem dar créditos. Não se diz a uma criança que deve portar-se bem para ter direito a um doce. Diz-se que o deve fazer porque é o que está certo.
Quanto a serem criteriosamente escolhidas, permito-me gargalhar. Algumas acções resultam em aprendizagem para quem as frequenta. Verdade. Mas também no prestígio para quem as lecciona. E no crédito, para o cofre da OA, que os estagiários entregam adiantado para terem os seus créditos.

Escreve-se também que sobre os Conselhos Distritais da OA passará a impender tão só e apenas a obrigação de procederem a uma verificação sobre o cumprimento, pelos Advogados Estagiários, das formalidades do estágio, sem que seja necessário que emitam quaisquer juízos de mérito. Não se reconhece que a entrega de relatórios de consulta, de relatórios de intervenções é inútil, mas é um começo.

Com isso termina também a obrigatoriedade de os estagiários terem dez intervenções para apresentar. Mas continuam a ser obrigados a fazer escalas. A OA continua a dar o seu inestimável contributo para o funcionamento da Justiça: fornecendo mão de obra. E é perfeitamente inútil para o estagiário. Uma obrigação que outros assumiram por ele, que o vincula, à qual se não pode furtar. Mas é para o bem dele. Para aprender. Para o fazer Advogado. Como a tropa faz homens. Por acaso, ou não, o serviço militar já não é obrigatório.

Um criado da quinta alumiava adiante com o lampião; e o moço das Silveiras levava ao colo o Eusebiozinho, que parecia um fardo escuro, abafado em mantas, com um xaile amarrado na cabeça.
Os Maias, Eça de Queirós

O preâmbulo não explica porque aumenta o período de estágio para dois anos. Talvez tenha sido apenas porque é um número mais redondinho e isso não era bonito o suficiente para ficar escrito. Ou talvez porque é tão absurdo que nem tentaram explicá-lo. Ou talvez porque o sentido de impunidade é tal que não há a preocupação em justificar as suas opções. A OA é independente. Autónoma. Irresponsável. Faz o que lhe dá na real gana. Sem ter que apresentar qualquer justificação. É assim porque sim. É assim que se educam as crianças.

Ia abraçar Carlos outra vez entusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma bela risada, saltou do terraço, foi pendurar-se de um trapézio armado entre as árvores e ficou lá, e ficou lá, balançando-se em cadência, forte e airoso, gritando: “Tu és o Vilaça.”
Os Maias, Eça de Queirós

07 maio 2006

Carthago delenda est

Catão era romano. Dizem que um dos últimos verdadeiros romanos. Dos que cultivavam a virtus. Dos que acreditavam na justitia. Dos que honravam o mos maiorum. Era romano do tempo das Guerras Púnicas. De quando Roma venceu Cartago e se contentou com isso. Catão achava que Cartago continuava a ser uma ameaça, que o Mediterrâneo não podia ter duas cidades dominantes, uma em cada margem. Dizia que Carthago delenda est. Dizia que Cartago deve ser destruída. Acreditava tanto nisso, que terminava sempre os seus discursos com essa frase, qualquer que fosse o assunto tratado, quer fosse no senatum ou na sua villa.

Ora, de Catão não tenho mais que o conhecimento. De que ele existiu, bem entendido. Mas apetece-me usar também a sua expressão. OA delenda est. O Mediterrâneo pode ser o mercado de trabalho. Cartago pode ser a OA. Roma pode ser a Universidade. O Catão é o pequeno estagiário. Catão tinha razão: o Mediterrâneo é pequeno demais para ter duas cidades dominantes. E ambas completamente independentes, cada uma com as suas regras. A Universidade é autónoma. A OA é independente. Haja alguém que os controle.

Para entrar no Mediterrâneo é preciso pagar tributo a ambas. E prestar provas perante ambas.
Um M.I. Anónimo teve a delicadeza de me recordar que há mais mundo para além do Mediterrâneo. É verdade, que eu já espreitei para lá das Colunas de Hércules. Mas eu gosto é do Mediterrâneo, e esta política de mare clausum entristece-me.