21 outubro 2006

Dão-se conselhos / Da-se

O Mui Ilustre Colega alertou, e eu fui investigar. Com que então, dia da consulta jurídica gratuita?
Fui ao sítio da nossa Sacrossanta OA, dei umas voltas e encontrei o Regulamento Interno do Dia da Consulta Jurídica Gratuita. Pomposo, não? Está bom de ver: tinha que ser feito um regulamentozinho. Somos Advogados, com a breca!

Não deixo de me alegrar sempre que leio um regulamento da OA. Creio mesmo que é a sua verdadeira vocação: a prolação de regulamentos para tudo e mais umas botas, a sua necessidade de fingir que organiza tudo, a avidez com que pretende regular e reger e regulamentar e reprimir e controlar e dirigir e regimentar e impor.

Diz a introdução do tal Regulamento, e preparem-se:
Contrariando o sentido da globalização e da massificação da informação, considera-se que uma grande percentagem dos cidadãos se limita a acções e reacções perante a realidade que os cerca como escravos e não como senhores das circunstâncias.
O quê???

Que é isto, murmurou Cipriano Algor, que pesadelo é este, quem eram estas pessoas. Aproximou-se mais, passou lentamente o foco da lanterna sobre as cabeças escuras e ressequidas, este é homem, esta é mulher, outro homem, outra mulher, e outro homem ainda, e outra mulher ainda, três homens e três mulheres, viu restos de ataduras que pareciam ter servido para lhes imobilizar os pescoços, depois baixou a luz, ataduras iguais prendiam-lhes as pernas.
José Saramago, A Caverna

Como nada de realmente útil tem o Regulamento para regulamentar, fazem-se regras para disciplinar o ridículo ao pormenor.
É criado um secretariado de apoio, sem prejuízo de poderem ser criados secretariados locais.
O local deve apresentar um mobiliário simples mas digno (uma secretária e três cadeira). Colocadas a 15cm da secretária, afastadas entre si por 10cm. A lâmpada deve ser de 100W e encontrar-se colocada exactamente sobre a secretária. Esta, por sua vez, deve conter apenas um bloco de folhas brancas, colocadas num ângulo de 37 graus para a esquerda.
O consulente deve identificar-se com nome completo, idade, estado civil, morada, contacto telefónico (móvel e fixo), profissão e assunto a tratar.

- Eu sou o Tó Zé, a companhia cortou-me o telefone, não tenho nenhum número fixo de momento. Foi até por isso que cá vim, a ver se o Dôtor me dá um jeito nisto.
- Não tem número telefone fixo, não podemos fazer nada. É o que está no Regulamento. Chegue-se para o lado, deixe passar quem é cliente da PT!

O Ilustrinho Estagiariozinho também é convidado a participar. Quer dizer, a aparecer. Pode assistir, mas sem direito de intervenção. Ora, o Estagiário, diz outro Regulamento, não tem direitos, ergo, não tem direito de intervenção.
É obrigado a fazer escalas. A fazer audiências de julgamento. Debates instrutórios. Primeiros interrogatórios. Mas não pode aconselhar. Mas porquê?

Mandam os Estagiários fazer aquilo para o que mais ninguém se disponibiliza. Não está em causa prestar um serviço aos cidadãos, elucidar as massas quanto aos seus direitos, educar as pessoas nas exigências que fazem. Mesmo que isso se diga num Regulamento. É a mais clara das hipocrisias. Mas há outras.

Como não poder o Advogado acompanhar o caso posteriormente. Diz que seria angariação de clientes. Isso é que a gente não quer! Porque o Senhor Doutor está ali para servir o próximo – literalmente – e não para fazer negócio. E tudo e tudo.
Achava que já tínhamos ultrapassado estes radicalismos. De novo: estas hipocrisias. É que enquanto a mesma OA – quase juro que é a mesma – impede que o Advogado que aconselha seja o Advogado que patrocina, celebra um protocolo com as Páginas Amarelas para permitir uma pesquisa especializada de Advogados.

Relembro, com tristeza irónica, uma manifestação de operários, feita não sei com que sinceridade (pois me pesa sempre admitir sinceridade nas coisas colectivas, visto que é o indivíduo, a sós consigo, o único ser que sente). Era um grupo compacto e solto de estúpidos animados, que passou gritando coisas diversas diante do meu indiferentismo de alheio. Tive subitamente náusea. Nem sequer estavam suficientemente sujos. Os que verdadeiramente sofrem não fazem plebe, não formam conjunto. O que sofre, sofre só.
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego

18 outubro 2006

Ao Capitão Haddock

Um bom coscuvilheiro não deve nunca revelar as suas fontes. Também não o farei. Mas tive acesso a uns pareceres emitidos por Suas Excelências os formadores da não menos Excelente OA.
E fico indignado. Irritado. Revoltado. Zangado. Irado. E enfadado. Cansado. Aborrecido. Enfastiado.

- Fibusteiros, marinheiros de água doce, colocíntidas, cabeças de martelo, fanfarrões de orquestra, mamelucos, patagónios!

Num parecer de recurso de prática processual civil, em que se censura a falta de rigor na prova apreciada, para além de uma clara dificuldade no uso de vírgulas e acentos, há erros de concordância de número e género entre artigos e substantivos, entre pessoa e forma verbal e gralhas várias, injustificadas, que qualquer corrector ortográfico evitaria ao Senhor Corrector.

- Subprodutos de ectoplasma, rocamboles, pterodáctilos, sacripantas, cretinos dos Alpes, coloquintas, saltimbancos amestrados, saguins!

Num parecer sobre um exame de deontologia, lê-se, ipsis verbis:

“Podemos, no entanto, adiantar que falece de razão a pretensão da requerente.
O que está em causa e o que foi valorado e corresponde aos 1,35 valores, em 1,5 possível, com que foi classificada a sua resposta no seu todo.
Assim sendo, não merece reparo a classificação atribuída.”

Já o parecer de revisão, deixa muito a desejar. O que se transcreve é a justificação dada. Não foi nada cortado, são estes três parágrafos que fundamentam a decisão de não subir a nota. Talvez de subir o suficiente para o Estagiário poder fazer oral. Ou dispensar. Não deve ser impressão minha o facto de faltarem palavras. A fundamentação, propriamente dita. O que é que, por obséquio, está em causa, afinal?

- Galináceos, espécie de babuínos, cercopitecos, velhacos feitos de extracto de cretino, espécie de logaritmos, espécie de equilibristas!

Diz-se num outro, também de deontologia:

“Ora, não cumpre nesta fase, concordar ou não com a classificação atribuída na grelha, mas antes ajustar e compaginar a resposta com a mesma.”

Quando será, afinal, o momento de contestar a douta grelha de correcção? Podemos? E a quem? Talvez fosse conveniente discutir-se a grelha enquanto ela ainda está a ser usada. O Venerando formador de recurso não nega que a grelha seja imperfeita. O que diz é que isso não interessa nada. Está na grelha, é lei. Dura lex, sed lex.

- Velhos pepinos, bugres subnutridos, zebróides, protozoários, sapos do deserto, selvagens preparados com molho tártaro, piróforos!

[...] Reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. [...] Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promete mais que o dia, e eu sei que ele tem um decurso e fim.
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego

12 outubro 2006

Com Bolonha é que é!

No site da OA, ou do FORMARE, está o resumo do pensamento do Digníssimo Bastonário quanto ao processo de Bolonha: concorda.

Porém, entende que o Governo deve clarificar qual o "ciclo de estudos necessários". Confesso: não conheço o processo ao pormenor. Ainda assim, não sei que me parece o comentário. O que se pretende com Bolonha é, precisamente, uniformizar o plano de estudos nas faculdades europeias, pelo que qualquer decisão, diria eu, que não sei nada disto, não depende (só) do Governo, que com tanta autoridade assim é intimado a explicar-se.

O sistema de ciclos de estudos parece já ser conhecido: licenciatura de três ou quatro anos, mestrado de um ou dois, doutoramento de pelo menos três. O plano curricular há-de depender de cada Universidade. Parece que são autónomas. E tudo e tudo.
Mas o Mui Ilustre Bastonário quer saber mais. E com razão, que o saber não ocupa lugar. Diz que é para garantir que não há degradação da carreira.

Senhor Bastonário, Mui Digno Bastonário, degradante é passar três anos a estagiar para aquecer. É ficar sujeito ao numerus clausus que uns senhores entendem fixar. É passar 8 anos na expectativa de ser autorizado a exercer uma profissão. E não ser.
Mas desde que seja a OA a fazê-lo não há problema. Um pai pode corrigir um filho, um estranho é que não.

Manifestou também Sua Excelência, o Mui Distinto Bastonário, a intenção de a OA só aceitar futuros candidatos a Advogados com o grau de mestre, ou seja, com os mesmos cinco anos de faculdade que agora. A mudança é claramente uma coisa que faz muita confusão à Veneranda OA.

Mas um velho de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvíamos claramente,
C’um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito.
Luís de Camões, Os Lusíadas

Diminui-se o tempo da licenciatura, aumenta-se o do estágio, que de dezoito meses passou para vinte e quatro. Três anos são suficientes para a licenciatura, mas não para aceder à OA.

Pois claro, estamos sempre a aprender. E as leis estão sempre a mudar. E nunca se sabe de mais. E a vida é uma constante aprendizagem. E parar é morrer. Tudo verdade.
Proponho que se estabeleça um estágio perpétuo. Não pago, como é óbvio. Vamos de encontro à essência da profissão, aos princípios de Cícero, à justiça administrada pelos homens justos e bons, à proibição de retribuição, que mancha as mãos puras e desinteressadas da justiça e dos justiceiros. E tudo e tudo.

E disse assi: - “Ó Padre, a cujo império
Tudo aquilo obedece que criaste;
Se esta gente que busca outro Hemisfério,
Cuja valia e obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vitupério,
Como há já tanto tempo que ordenaste,
Não ouças mais, pois és juiz de direito,
Razões de quem parece que é suspeito.
Luís de Camões, Os Lusíadas

A razão principal para a concordância do Mui Prezado Bastonário com Bolonha parece ser o facto de que “permite a aplicação junto dos estudantes de Direito do provérbio que diz “se vires um pobre não lhe dês o peixe, ensina-o a pescar””.

Suponho que outros provérbios poderiam ser aplicados com igual (nenhuma) acuidade: “a cavalo dado não se olha o dente”, “água mole em pedra dura, tanto dá até que fura”, “quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos”, “quem casa quer casa”.

Que raio se quererá dizer com isto? Faz falta uma Engenharia em Sabedoria Popular, variante A Ser Usada Por Advogados e Outros Profissionais do Direito, com especialização em A Ser Usado Quando Se Não Quiser Dizer Nada.

Por tentativas:
a) então, um curso de cinco anos é inútil, é dar o peixinho aos meninos? Enfim, vender, por uma quantia simbólica a título de propinas, que só não é maior porque a lei não deixa. É agora, em menos tempo, nestes três anos, que se vão realmente formar juristas?

b) então, cinco anos é demasiado, é um esbanjamento? Em três é que todos vão aproveitar para bem ensinar tudo o que é necessário?

c) então, se em três anos nos vão ensinar a pescar, finalmente, o que nos vão ensinar nos outros três de estágio na OA?

d) então, antes cinco anos eram inúteis, mas seis, contando com o estágio, não são?

Ainda sou do tempo em que não ensinavam a pescar na Faculdade: não percebi.



08 outubro 2006

Enrabu!

Há alguns anos, catalogou-se uma geração de rasca. Agora, as criancinhas cresceram, e a mesma geração passou a chamar-se canguru. Até podia tentar explicar o que é um menino rasco. Mas nunca percebi muito bem. Não sei se o facto de eu próprio ser dessa geração influencia esta ignorância.

- Sfiiif sfiiif ssssiiiiiiifff sssfiiiiffffiifiii...

Acho que se queria dizer que os jovenzinhos não têm valores, não respeitam ninguém, não sabem o que custa a vida. Putos mimados.
A geração anterior era a dos bravos de Abril, esta é a dos abusadores de Abril.

- Andei eu a ser torturado, para o raio do puto fazer um piercing!

Abusam da liberdade. Não sabem o que ela custa. Acham que o dinheiro nasce no multibanco. Não dão valor ao trabalho.

Agora, aí está a geração canguru.

- Canguru, diz-me tu quantos pêlos tens tu... no nariz! Can-gu-ru!!

Chamam-lhe assim porque diz que não há maneira de os moços saírem de casa dos pais. Diz que não querem sair da bolsa marsupial. Ergo, cangurus.

Os senhores intelectuais cruzam a perna, bafejam o cachimbo, puxam a barba vetusta, descaem os óculos ilustres, põem uma mão sobre o joelho e filosofam quanto às dificuldades que eles passaram. Porque naquele tempo é que era. Sair da escola com a 4ª classe e ir trabalhar. Ou sair de casa dos pais para a do padrinho que tinha um negócio na cidade.

- Pois é!

Senhores que gostais de catalogar, tomai tendo! Noutros tempos, não era necessária frequência universitária para conseguir emprego. Hoje também começa a ser relativamente indiferente ter ou não formação universitária. Passámos a vida a ouvir gritar os paizinhos de como era importante estudar muito e tirar um curso e ser muito ajuizado. Não é bem assim.

Concluir um curso, arranjar trabalho, garantir o emprego, conseguir uma casa demora sete anos. Nove, se forem licenciados em direito, e fizeram o inútil estágio à primeira volta.
Não há dinheiro. Não é que os jovenzinhos sejam preguiçosos, que sejam irresponsáveis, que apreciem que a mãe lhes confisque as revistas pornográficas. É necessário. E embaraçoso. Um marmanjão de trinta anos a morar com os pais não impressiona uma mocinha de boas famílias.

- O meu paizinho quer saber como me vais sustentar.

Disseram que era necessário um curso. Disseram que Direito era bom. Disseram que era uma profissão nobre. Disseram que seriam cinco anos, e depois era uma casa com piscina, um BMW à porta e as férias que quisesse.
Afinal a faculdade é um ensaio para o estágio que há-de vir. E ficar.
Nem há trabalho, nem casa com piscina, nem BMW, nem férias.
Mais do que uma geração canguru é, como dizia o outro, uma geração enrabu.