13 novembro 2006

Fora de Prazo

O artigo 12.º do Código Civil diz assim: a lei só dispõe para o futuro. É um daqueles princípios sagrados. Em todas as áreas do Direito, aplicável a todas as entidades. Uma vez que se aplica a todos, da mesma maneira, é de prever que se não aplique à OA. É natural. Em casa de ferreiro, espeto de pau.
O rigor manda que se apontem as excepções que confirmam aquele princípio. Até para mais enfatizar o absurdo.
A lei penal aplica-se retroactivamente quando resultar disso benefício para o condenado. Até se pode perceber.
A outra: as alterações feitas no direito processual aplicam-se imediatamente. Não se aplicam retroactivamente, mas imediatamente, o que é diferente. E ainda assim, o legislador entendeu que apenas assim será quando as normas adjectivas em causa não tenham um conteúdo substantivo. Em nome da segurança e da boa fé e das expectativas e da justiça.
O normal é, pois, que as leis só se apliquem às situações ocorridos após a sua entrada em vigor.

Foi aprovado um novo regulamento de estágio em 2005. Ora, como o estágio é um projecto de vida, que se estende por um período que nunca mais acaba, a entrada em vigor de um novo regulamento necessariamente interfere com várias gerações de infelizes estagiários: os desgraçados que acabam de iniciar e que ainda não sabem ao que vão e os desgraçados que ainda não sabem como saem.

Seria de supor que o tal regulamento se aplicasse apenas aos cursos de estágio ainda não iniciados. Mas não. A OA é um caixote de surpresas. De facto, escreveu-se que o regulamento apenas se aplicaria aos cursos de estágio que se iniciassem depois da sua entrada em vigor. Está certo. Porém, esse é apenas o número 1 do artigo 45. E são 6 números.
Quando foi aprovado o regulamento 52-A/2005 – o tal novo regulamento, por enquanto em vigor – das normas transitórias constava o seguinte, e permitam-me a transcrição, que se não me prendo às palavras, sou capaz e dizer o que (não) quero:

Artigo 45.º
[...]
4. Os advogados estagiários que se encontrem a cumprir a fase de formação complementar e aos quais seja aplicável o presente regulamento, ficam sujeitos ao exame final tal como estabelecido no Capítulo IV do presente regulamento, aproveitando-se a aprovação obtida nas provas de aferição.
5. Independentemente do previsto no regime de faltas ou do tempo de suspensão da inscrição, ficam ainda sujeitos ao presente regulamento, os advogados estagiários que tenham cumprido o seu estágio ao abrigo de regulamentos anteriores e que no prazo de um ano após a entrada em vigor do presente regulamento, não tenham realizado com êxito a prova oral de agregação, ficando obrigados à repetição da fase de formação complementar.

A minha dificuldade maior está nestes dois números. O número 4, por remissão para o tal capítulo IV, determina que em caso de não aprovação na prova oral, nos 60 dias seguintes (2 meses, 60 dias, 1440 horas, 86400 minutos, 5184000 segundos) pode ser realizada outra tentativa. Só mais uma. E depois repete toda a fase complementar, que será então de dezoitos meses que, já sabemos, se suspendem nas férias judiciais – nas antigas.

É claro que isto só se aplica aos estagiários sujeitos ao novo regulamento. E perguntei eu: quem são os infelizes? O número 3 deste magnífico artigo explica:

3. Os advogados estagiários que se encontrem a cumprir a segunda fase de estágio ao abrigo dos regulamentos anteriores ficam sujeitos ao presente regulamento se:
a) Obtiverem por duas vezes classificação negativa no exame final de avaliação e agregação;
b) Tiverem suspendido, por período superior a um ano, a realização do seu estágio, independentemente da causa de suspensão;
c) Optarem pela sujeição ao presente regulamento, nos termos do antecedente numero 2.

Mas, vício de faculdade, fui ler todos os números do artigo. E li o já transcrito número 5. Ponham-se bem nele. Literalmente.
O regulamento foi publicado a 1 de Agosto de 2005. Em Outubro realizaram-se provas de agregação ainda de acordo com o regulamento anterior. Aparentemente, aos estagiários que, em Agosto de 2005, estivessem na fase complementar aplicar-se-ia o regulamento ao abrigo do qual tinham feito a sua inscrição. Mas não! É que as provas finais só foram marcadas pela OA para o mês de Outubro de 2006, mais de um ano após ter o novo regulamento entrado em vigor, para efeitos do número 5 do tal artigo 45.º. Todos os estagiários ficaram imediatamente sujeitos ao novo regulamento.

É claro que oficialmente o estágio termina em Maio, com a entrega dos relatórios e temas e consultas e avaliações de patronos e da cédula de estagiário. Maio foi antes do decurso de um ano. Mas os exames escritos só são marcados em Junho, as notas saem no fim de Agosto, as orais são em Outubro. Ao ritmo da vetusta OA, com sinais de esclerose múltipla e Alzheimer.

Vão as notificações do exame oral com a transcrição deste artigo 5.º, em tom de ameaça.

- O menino veja lá! Senhor Doutor! Se não faz agora, são mais 18 meses disto! Senhor Doutor! O Senhor Doutor está fora de prazo!

Achava que não podia odiar mais a OA. Mas ela é, de facto, um caixote de surpresas.

A partir do dia em que Cottard entrou comigo no pequeno casino de Incarville, apesar de eu não partilhar a opinião que ela havia emitido, Albertine deixou de me parecer a mesma; bastava-me vê-la para ficar irritado. Eu mudara, tanto quanto ela me parecia diferente. Deixara de lhe querer bem; na sua presença ou fora da sua presença quando lho podiam ir contar, falava dela de forma agressiva.
Marcel Proust, Sodoma e Gomorra

2 Comments:

Blogger TonecasPintassilgo said...

Excelente! Embora Direito não seja a minha área (vivo um pouco mais para o torto...) é um prazer ler este naco de inteligência e bom senso.
Em claro não deixo passar, isso sim também, a magnífica citação escolhida.

08 janeiro, 2007  
Anonymous Anónimo said...

OA...para quê?

25 março, 2007  

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