30 junho 2007

O(A) Mostrengo

Artigo 188.º/1 do Estatuto da Ordem dos Advogados: O estágio tem a duração global mínima de dois anos e tem início, pelo menos, duas vezes em cada ano civil, em datas a definir pelo Conselho Geral.

Com base nisto, vai o Conselho Geral e decide dar sem efeito o início do II Curso de Estágio de 2007. Deliberou assim, rezam as crónicas: [...] dá-se sem efeito, a data de 12 de Outubro de 2007, anteriormente designada para o início do 2.º Curso de Estágio. Esta deliberação não prejudica a realização do referido 2.º Curso de Estágio, que em condições legais e regulamentares, será objecto de posterior definição pela Ordem dos Advogados.

E porquê? Face ao processo de adaptação decorrente da Declaração de Bolonha, relativo ao acesso à profissão, neste momento em curso na Assembleia da República.

O defeito é meu que não percebo: ainda está em curso um debate sobre o processo de Bolonha. Não há lei, não há decisão, nada está decidido na Universidade. Qualquer que venha a ser a decisão dos órgãos competentes - que por acaso não são da OA - ainda não afecta nenhum licenciado em Direito. Ainda assim, previdente como sempre – raios a partam! -, pelo sim pelo não, pára já tudo! Não entra mais ninguém porque... não.

Os licenciados em Direito que terminaram o curso na época regular, ou em Setembro, perceberam agora que não vão iniciar o estágio. E não sabem bem porquê. Porque não. Porque a OA resolveu deixar claro que não concorda com a reforma do ensino superior motivada pelo Processo de Bolonha.
Já fez saber que nada importa se a licenciatura passa a ser de três anos, em vez dos actuais cinco: na OA só entra quem tiver cinco de faculdade. Entra Mestre!
Agora, resolve suspender sine die a inscrição dos recém-licenciados.

É que já estão licenciados. Já fizeram cinco anos de faculdade. Foram de férias pensando que eram as últimas antes dos horários e dos compromissos e das responsabilidades e do trabalho. A Sacrossanta OA acaba de prolongar, indefinidamente, o direito às férias do licenciado, que ainda não pode ser estagiário. (Quem é amigo, quem é?)

Lá vem a OA a usar os estagiários como material de campanha. Como arma de arremesso. Como objecto de propaganda. Sem vergonha. Sem pudor. Sem sanção.

E não há ninguém que a acuse. Que a confronte. Que a embarace. Não têm voz as centenas de licenciados à mercê da absoluta arbitrariedade da OA. E se tivessem, seriam imediatamente silenciadas, por certo. Algum princípio há-de haver que possa ser invocado para pôr a OA a salvo de qualquer censura que fosse feita à sua própria censura. Os princípios são coisas vagas o suficiente para servir toda a gente. Como fazem com qualquer ideia inovadora ou diferente. Como a loja jurídica.

- Ai, não pode! Isso não é digno da conduta de um Advogado! E tal!

Talvez a prepotência seja. Talvez não haja virtude sem castigo. E o castigo da OA é, portanto, a virtude de cada Advogado. Bem haja.

Mesmo quando um Advogado se julga injuriado por expressões usadas por um colega, não deve responder à provocação, ensina Guedes da Costa, M.I. Assim é que é bonito, como também ensina a Bíblia: dar a outra face. E a cara toda. E o braço. E a perna. E o demais que se possa. Vá lá: dar o corpo ao manifesto.

Que a imparcialidade não é meu mote, é obviamente verdade. Nem isso é de esperar de um Advogado.

Porque escrevendo o homem do que não é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve; mas mentira em este volume, é muito afastada da nossa vontade. Ó! Com quanto cuidado e diligência vimos grandes volumes de livros, de desvairadas linguagens e terras; e isso mesmo públicas escrituras de muitos cartórios e outros lugares, nas quais depois de longas vigílias e grandes trabalhos, mais certidom haver não podemos da conteúda em esta obra. Fernão Lopes, Crónica de D. João I

Mas não haverá abuso na OA? E nas decisões que toma? E na falta de critério? E na falta de justificação? E na despreocupação com que age? E na segurança que tem na sua impunidade?

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”
Fernando Pessoa, A Mensagem